Por Silvano Mendes
Reportagem publicada em 15/03/2005 Última atualização 18/03/2005 19:11 TU
Paris foi «um acaso» em sua vida, como ela mesma define. Após terminar a faculdade de medicina, essa filha de uma família de classe média do nordeste brasileiro, nascida na fronteira entre a Paraíba e Pernambuco, se mudou para São Paulo, onde fez sua residência no Hospital das Clínicas. Em seguida, decidiu fazer uma especialização em dermatologia fora do país e, após entrar em contato com vários hospitais, recebeu uma resposta positiva do conceituado Hospital Saint Louis, em Paris.
Isso foi no início dos anos 80, quando os médicos franceses recebiam os primeiros pacientes vítimas da Aids, boa parte deles transexuais que se prostituíam no Bois de Boulogne, um parque nos arredores da capital. Muitos deles eram brasileiros e esse contato parece ter sido um divisor de águas na vida de Camille. Ao mesmo tempo que se sensibilizava com a situação dos pacientes, ela se transformava aos poucos. Hormônios femininos, aplicações de silicone e outras cirurgias plásticas, tudo para se tornar o que sempre acreditou ser : uma mulher. Hoje «na casa dos 40», ela apagou completamente da memória seu nome masculino.
Entretanto, ao contrário de seus pacientes, Camille trabalhava em um hospital e o fato de estar entre os dois sexos – como definem os próprios transexuais nessa fase de transformação – não agradava todo mundo. Apesar de ser respeitada pelos colegas de trabalho, perdeu seu emprego vítima de discriminação após nove anos no hospital. Hoje, o episódio certamente teria sido evitado, já que ela conhece como a palma da mão as leis de proteção contra homofobia e transfobia na França.
O mundo associativo
Mas há males que vêm para o bem. Desempregada, a médica começou uma formação sobre doenças sexualmente transmissíveis e, no final do programa, cada um dos participantes apresentou um projeto. Dessa iniciativa nasceu o Pastt, sigla que significa Prevenção, Ação, Saúde e Trabalho para os Transgêneros (expressão que ela prefere quando fala de transexuais).
A associação funciona como uma plataforma de ajuda a transexuais, « trabalhadores do sexo » ou não (Camille evita o termo ‘prostituta’). Entre seus programas, pode-se destacar o do ônibus com uma equipe de prevenção, presente várias vezes por semana nas principais zonas de prostituição de Paris. Há ainda uma estrutura de apoio jurídico e formação na sede da associação, com a promoção de cursos de francês aos recém-chegados, e um programa de ajuda nas prisões. Com este último, o Pastt tenta melhorar a vida dos transexuais que ficam isolados, já que não podem ser encarcerados no setor dos homens, nem na área destinada às mulheres.
Atualmente, quando o assunto é prevenção e luta contra a precariedade, a ativista se destaca no agitado mundo associativo francês. Seu grupo desenvolve nada menos que oito projetos diferentes, alguns deles apoiados por instituições de peso, como o Ministério da Saúde francês ou a Comissão Européia. E a participação em eventos internacionais é prova desse destaque. Exemplo: o convite para a conferência internacional sobre a Aids organizada pela OMS, em 2004, em Bangkok. «Além de discutirmos temas importantíssimos, ainda conheci o ator norte-americano Richard Gere», lembra, com muito bom humor.
Uma business woman diferente
A rotina de Camille mudou muito desde o início do Pastt. Ela praticamente não sai do escritório para acompanhar o ônibus da prevenção e há tempos não vai às prisões. Seu trabalho consiste principalmente na gestão da associação e da equipe, composta por 14 assalariados, além de suas obrigações como vereadora e das reuniões com autoridades do setor público e privado. Agenda digna de uma administradora bem-sucedida.
Mas isso não quer dizer que ela tenha esquecido seu lado militante. Basta vê-la portando a bandeira do Pastt nas diversas manifestações ligadas à luta contra a Aids. Além disso, alguns momentos quase mágicos mostram que nem mesmo o dia-a-dia corrido de chefe de equipe mudou seu jeito de ser. Como quando, durante a entrevista, ela interrompe tudo por mais de uma hora para escutar a história de um jovem transexual vindo de um país árabe, que conta os horrores vividos em sua terra. Nesse momento, Camille não é mais a business woman ou a vereadora, nem mesmo a ativista, e sim uma amiga que conhece parte dessa realidade. Compreende, compartilha, sorri, reconforta. E no final, a frase que resume tudo : «a gente vai cuidar do seu caso, não se preocupe».