Por Maria Emilia Alencar
Reportagem publicada em 15/03/2005 Última atualização 22/03/2005 17:16 TU
Quando Angélica Chaves chegou em Paris em 1984, ela era só atriz. E nem pensava em ser coreógrafa e cineasta. E muito menos em começar aos 47 anos uma carreira de estilista. Mas Angélica tem uma curiosidade aguçada, um senso artístico desenvolvido e nenhum medo do ridículo. Isso tudo a levou a criar a personagem Romilda Margarida e consequentemente a se tornar uma artista polivalente. Romilda, uma mistura de Carmem Miranda, Buster Keaton e Dercy Gonçalves, foi interpretada pela primeira vez por Angélica num solo coreográfico na Terceira Bienal de Dança de Lyon, dedicada ao Brasil, em 1996. O sucesso a estimulou : ela fez um curso de roteirista de cinema em Paris e transpôs Romilda para o vídeo, realizando vários curtas metragens que acabaram sendo comprados pelo Canal Plus, a primeira televisão francesa por assinatura. Romilda Margarida ganhou prestígio e acabou virando, seis anos depois, o poster da 10ª Bienal da Dança de Lyon, cujo tema era « Terra Latina ».
Mas afinal quem é Romilda ? Angélica gosta de definí-la como patética, burlesca, kitsch, barroca. Outros vêem nessa mulher, com vestido vermelho de imensas bolas brancas e peruca preta, algo do universo do cineasta espanhol Pedro Almodóvar, com uma forte pitada tropical. Mas Romilda muda de cara e de roupa dependendo da ocasião : ela pode ser uma cantora de ópera, uma faxineira que tenta descolar uma ponta no cinema, uma noiva romântica, uma mulher fatal… Uma coisa é certa : Romilda é a síntese dos talentos e da história de Angélica Chaves, gaúcha nascida em Porto Alegre, em 1957, numa família de classe média.
« No Brasil há um racismo hipócrita »
Romilda : síntese da história de Angélica
DR
Desde os quatro anos de idade, quando se mudou para São Paulo, Angélica gostava de se fantasiar e « fazer teatrinho » para os pais, aproveitando as cortinas da sala de sua casa no Bixiga, o popular bairro paulistano da imigração italiana. Uma infância feliz, com muitas crianças em volta, mas desde cedo a consciência, transmitida pelo pai, de que não é facil ser negro e de que o racismo existe no Brasil. « Um racismo hipócrita, velado », diz Angélica. Mas ela sempre se recusou a se mostrar como vítima. Mesmo se não era fácil ser a única aluna negra, além de seu irmão, em uma escola judaica frequentada pela elite paulistana, onde seu pai conseguiu duas bolsas de estudos. Às vezes, quando ela ía estudar na casa dos colegas de classe, o porteiro do prédio, geralmente negro, a encaminhava pela « porta dos fundos ». Determinada, mas não resignada, Angélica diz « que o importante é chegar onde tenho que chegar, seja qual for a porta ».
E ela sempre criou estratégias para abrir novas portas e viver desafios. Começando pela escolha profissional : ser atriz, mesmo sabendo que há menos oportunidades para os artistas negros, limitados a papéis de subserviência, « tanto no Brasil quanto na França ». Angélica cursou a Escola de Arte Dramática de São Paulo entre 1974 e 1978 e, depois de uma breve carreira no Brasil, mudou-se para Paris em 1984, já casada com o arquiteto e cenógrafo Beto Mainieri, seu companheiro de estrada há 25 anos.
« Menos oportunidades para os artistas negros »
DR
« Mais sol e menos burocracia »
No início, a idéia do casal era ficar um ano em Paris. Vinte anos se passaram…Tempo suficiente para Angélica se tornar uma verdadeira parisiense e conhecer o bairro onde vive - o nono « arrondissement », no pé da colina de Montmartre - como a palma da mão. Ela desenvolveu em Paris sua carreira de bailarina em duas companhias de dança contemporânea - Lolita Danse e Beau Geste –fazendo várias turnês pela Europa. Participou de diversos clips, ganhou a vida fazendo pontas em filmes publicitários, trabalhou como atriz em alguns longas metragens brasileiros e franceses, até a criação, nos anos 90, de sua personagem Romilda Margarida que lhe abriu novos horizontes.
Mas, aos poucos, foi batendo a vontade de voltar para casa. Angélica precisa de « mais sol, de relações mais simples, de menos burocracia e de maior flexibilidade para tentar novas atividades ». O trabalho de criação dos figurinos para Romilda despertou nela a nova vocação de estilista. Ela começou a desenvolver uma linha de acessórios e pretende reunir tecidos franceses e brasileiros em suas criações. E para Romilda Margarida, Angélica tem planos de um longa metragem : ela será, no Brasil, uma ex-dançarina de cabaré que redescobre de maneira tragicômica seu país natal após 20 anos de ausência.