Por Daniela Fernandes
Reportagem publicada em 15/03/2005 Última atualização 18/03/2005 19:30 TU
Quando o telefone de Abdallah Hitti toca, há sempre um intervalo de algumas frações de segundos, durante o qual sua mente se prepara para responder ao interlocutor, com a toda a naturalidade possível, em português, francês ou árabe. Essa tem sido a rotina desse líbano-franco-brasileiro nos últimos 30 anos. Para esse empresário do setor de informática, com escritórios em Paris e no Rio de Janeiro, especialista em sistemas de segurança para pagamentos na internet, fazer a conexão entre esses três países se tornou não só uma atividade econômica, mas também um estilo de vida.
Quando deixou a cidade de Zalka, a 5 km da capital, Beirute, no dia 22 de agosto de 1970, data que mudou « radicalmente » sua vida, Hitti não imaginava que um dia se tornaria brasileiro, sua nacionalidade de « coração », como ele diz. Na época, com 19 anos, Abdallah, o mais velho de uma família de sete filhos, veio à França para estudar informática. Seu pai, engenheiro, havia autorizado a viagem, mas impôs uma condição: que ele não morasse em Paris, “cidade de perdição”. Abdallah foi para Dijon estudar em curso preparatório para entrar nas chamadas « grandes escolas » da França. Após dois anos de estudos, obteve o direito de ingressar no reputado Instituto de Informática Empresarial de Paris (IEE). O pai não teve escolha e acabou aceitando que o filho se mudasse para a capital francesa.
O primeiro grande passo em sua carreira profissional ocorreu em 1974 , quando foi indicado por um professor do IEE para trabalhar como estagiário no grupo L’Oréal, maior fabricante mundial de cosméticos. No Instituto de Informática de Paris, além de encontrar o trabalho que acabou o levando para o Brasil alguns anos depois, Abdallah também conheceu sua esposa Martine, francesa, com quem está casado há 30 anos. Eles se casaram no Líbano após o estágio na L’Oréal e a idéia do casal era permanecer no país. Mas o início da guerra civil libanesa, em 1975, que opôs cristãos e muçulmanos (pertencentes a diferentes etnias e religiões e também divididos entre si), fez com que eles retornassem à França pouco tempo depois do casamento..
“Vidas paralelas”
O Brasil, até então, não fazia parte de seus planos. Por pouco tempo. Em mais um desses momentos na vida em que « o caminho é desviado », como diz Abdallah, ele recebeu um telefonema de um colega da L’Oréal pedindo para que ele adivinhasse de onde estava falando. A resposta, que ele não conseguiu acertar, era Rio de Janeiro. Abdallah recebeu o convite para assumir a diretoria de informática do grupo francês na capital fluminense, aos 26 anos de idade. Ele desembarcou no Rio em 1977, mais uma vez em dia 22, como quando deixou o Líbano. Afirma ter aprendido a falar português em 50 dias. O especialista em informática diz ter pego « o vírus do Brasil ». Foi no Rio, mais precisamente em Ipanema, que suas duas filhas, Mona e Sandra, nasceram durante os quatro anos de estada (a primeira) da família no Brasil. « Viramos brasileiros culturalmente », afirma Abdallah, que descobriu parentes libaneses no país, em Belo Horizonte e no Rio. «Não conhecia esses membros da família e só fui encontrá-los quando cheguei ao Brasil », conta ele, que até hoje tem contato com essas pessoas. A descoberta dos parentes « brasileiros » acabou o levando a criar um site internet para manter contatos com todos os Hitti espalhados pelo mundo.
Após essa primeira experiência de quatro anos no Brasil, Abdallah passou a ter o que chama de « vidas paralelas ». Retornou à França no início dos anos 80, após o fechamento do Centro de Processamento de Dados da L’Oréal no Rio, com o aparecimento da onda da micro-informática. Trabalhou em um grupo francês, onde criava programas de contabilidade para pequenas e médias empresas. Abriu sete filiais, entre elas, claro, no Brasil. Abdallah viajava, como ele diz, « mais do que piloto de avião » e passava metade de seu tempo em São Paulo. Decidiu se instalar novamente no país, desta vez na capital paulistana, em 1985. Foi nesse período que obteve o passaporte « verdinho » em razão da nacionalidade de suas filhas. Novamente, voltou à França dois anos depois, mas quis que suas filhas estudassem em uma escola com uma seção de língua portuguesa para não perder o contato com o Brasil.
Durante 13 anos, Abdallah trabalhou na área de informática de grandes bancos franceses. Criou, em 1990, o banco Cortal, o primeiro no mundo sem agências. Foi no mesmo ano que a guerra civil no Líbano terminou e Abdallah retomou também contatos com seu país de origem. Sua experiência no setor, adquirida sobretudo na França, fez com que ele se tornasse consultor de bancos brasileiros, na chamada « área de bancos à distância », por telefone. Graças à reputação, ele virou consultor de informática para os governos do Brasil e da França. Com a explosão da internet, Abdallah criou inúmeras empresas de segurança para pagamentos on-line. Oito não sobreviveram e quatro deram certo, que ele revendeu posteriormente. Abdallah aprendeu, no bom estilo brasileiro, a “dar a volta por cima”. Hoje, a partir de seu escritório situado na rua Marbeuf, próxima da Champs Elysées, ele representa 11 empresas na França (investidores internacionais, sobretudo europeus) de programas de segurança para pagamentos na internet e comanda suas duas empresas no Rio de Janeiro, de consultoria informática; além de suas três companhias também de consultoria no Líbano.
Embaixador econômico
Nessa movimentada rotina de trabalho, de 15 horas por dia, como ele diz, Abdallah tem uma regra: vai ao Brasil a cada dois meses, onde permanece por uma semana, e faz o mesmo em relação ao Líbano. Ele também está investindo na área imobiliária no Brasil (em São José do Rio Preto, no interior de São Paulo, nos Lençóis Maranhenses e no Pará). Tem apartamentos em Paris, Beirute e Rio de Janeiro para garantir essa rotina de “caixeiro-viajante”.
Uma das maiores honras que teve, como ele diz, foi ter recebido o convite do embaixador brasileiro em Paris, Sérgio Amaral, para criar a Associação Comercial França-Brasil, uma espécie de embrião para uma futura Câmara de Comércio Brasil-França em Paris. « Fui convidado como brasileiro, não como francês », se orgulha o libanês. Entre seus planos, está o de se tornar o « embaixador econômico » do Brasil e do Líbano na França. E não adiantar perguntar a Abdallah se ele se sente um libanês no Brasil, um brasileiro na França ou um francês no Líbano. «Essas três culturas fazem parte integrante da minha vida. Há momentos do dia em que me sinto cada um deles». Entre os vários programas de computador que criou, Abdallah deve ter desenvolvido um pessoal, para se conectar de forma instantânea a esses três mundos.